quarta-feira, 19 de abril de 2017

Tratado - Dia #10L - 12 dias preliminares


10º dia 

Artigo Terceiro 

Devemos esvaziar-nos do que há de mau em nós 

78. Terceira Verdade. As nossas melhores ações são ordinariamente 
manchadas e corrompidas pelo mau fundo que há  
em nós. Quando se deita água límpida e clara numa vasilha 
que não tem bom cheiro, ou vinho numa pipa cujo interior 
está azedado por outro vinho, que teve anteriormente, a água 
clara e o vinho bom ficam estragados e ganham facilmente o 
mau cheiro. Do mesmo modo, quando Deus infunde em nossa 
alma, corrompida pelo pecado original e atual, as suas graças 
e orvalhos celestes, ou o vinho delicioso do seu Amor, 
assim também os Seus dons são ordinariamente manchados e 
estragados pelo mau fermento e mau fundo que o pecado deixou 
em nós. Os nossos atos, mesmo as virtudes mais sublimes, 
disso se ressentem. É, pois, da mais alta importância, 
para adquirir a perfeição - que só se alcança pela união com 
Jesus Cristo - esvaziarmo-nos do que há de mau em nós. Doutra 
forma, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e que odeia 
infinitamente a menor mancha que vê na alma, afastar-nos-á 
de Seus olhos e não se unirá a nós.




79. Para nos despojar de nós mesmos é preciso: 
Em primeiro lugar, conhecer bem, pela luz do Espírito  
Santo, o nosso fundo mau, a nossa incapacidade para qualquer 
bem útil à salvação, a nossa fraqueza em todas as coisas, 
a nossa permanente inconstância, a nossa indignidade de toda 
a graça, a nossa iniqüidade em toda a parte. O pecado dos 
nossos primeiros pais arruinou-nos a todos quase por completo, 
azedou-nos, corrompeu-nos, fez-nos inchar como o fermento 
faz à massa em que é lançado. Os pecados atuais que 
cometemos, quer mortais, quer veniais, embora tenham sido 
perdoados, aumentaram-nos a concupiscência, a fraqueza, a 
inconstância e corrupção, deixando maus vestígios na nossa 
alma. O nosso corpo é tão corrupto que é chamado pelo Espírito 
Santo corpo de pecado (Rm 6, 6; Sl 50, 7), concebido no 
pecado, alimentado no pecado, capaz de todo pecado e sujeito 
a mil enfermidades. Corrompe-se de dia a dia, e gera somente 
sarna, vermes e corrupção. A nossa alma, unida ao corpo, 
tornou-se tão carnal que chega a ser chamada carne: “Toda 
a carne tinha corrompido o seu caminho” (Gn 6, 12). A nossa 
única herança é o orgulho e a cegueira de espírito, o endurecimento 
do coração, a fraqueza e a inconstância da alma, a 
concupiscência, a revolta das paixões e as doenças do corpo.
Somos, naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais 
apegados à Terra que os sapos, piores que os bodes, mais invejosos 
que as serpentes, mais gulosos que os porcos, mais 
coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas, 
mais fracos que caniços e mais inconstantes que os cata-ventos. 
De nosso só temos o nada e o pecado, e só merecemos a ira de 
Deus e o inferno eterno. 

80. Depois disto, será para admirar que Nosso Senhor tenha 
dito que quem o quisesse seguir devia renunciar a si mesmo 
e odiar a sua própria alma? (Mt 16, 24). Que aquele que 
amasse a sua alma a perderia, e o que a odiasse a salvaria? (Jo 
12, 25). Esta Sabedoria infinita, que não impõe mandamentos 
sem razão, não nos manda odiarmo-nos a nós mesmos senão 
porque somos sumamente dignos de ódio. Nada há tão digno 
de amor como Deus, e nada tão digno de ódio como nós. 

81. Em segundo lugar, para nos despojar de nós mesmos, é 
preciso morrer todos os dias. Isto quer dizer que é preciso 
renunciar às operações das potências da nossa alma e dos sentidos 
do nosso corpo, ou seja: temos de ver como se não víssemos, 
de ouvir como se não ouvíssemos, de nos servir das 
coisas deste mundo como se delas não nos servíssemos (1 
Cor 7, 29-31). É a isto que São Paulo chama de morrer todos 
os dias (1 Cor 15, 31). “Se o grão de trigo cai à Terra e não 
morre, permanece só e não produz fruto” (Jo 12, 24). Se não 
morrermos para nós mesmos, e se as nossas devoções mais 
santas não nos levam a esta morte necessária e fecunda, não 
daremos fruto que valha. Porque então as nossas devoções 
tornar-se-ão inúteis, todas as nossas boas obras serão manchadas 
pelo amor próprio e pela nossa vontade própria, o que 
fará com que Deus abomine os maiores sacrifícios e as melhores 
ações que possamos fazer. E, nesse caso, encontrarnos-emos com as mãos vazias de virtudes e méritos na hora da 
nossa morte, e não teremos sequer uma centelha de Puro Amor, 
pois este só é dado às almas mortas para si mesmas e cuja vida 
está oculta com Jesus Cristo em Deus (Cl 3, 3). 

82. Em terceiro lugar, é preciso escolher, dentre todas as 
devoções à Santíssima Virgem, aquela que nos leva mais a 
esta morte para nós próprios, porque é esta a melhor e a mais 
santificante. Não se julgue, de fato, que tudo o que brilha é 
ouro, que tudo o que é doce é mel, e que tudo o que é fácil e 
praticado pela maior parte das pessoas é o mais santificante.

Na natureza há segredos para fazer operações naturais 
em pouco tempo, econômica e facilmente. Na ordem da graça 
existem também segredos para fazer operações sobrenaturais 
em pouco tempo, suavemente e facilmente, tais como: 
despojar-se de si mesmo, encher-se de Deus e tornar-se perfeito.

A prática que quero revelar é um desses segredos de 
graça, desconhecido pela maior parte dos cristãos, conhecido 
por poucas almas piedosas, praticado e apreciado por menos 
ainda. Para começar a descobrir esta prática, eis uma quarta 
verdade, que é uma conseqüência da terceira. 

Artigo Quarto 

Temos necessidade de um mediador  
junto ao Mediador mesmo, que é Jesus Cristo 

83. Quarta Verdade. É mais perfeito, porque mais humilde, 
não nos aproximarmos diretamente de Deus, mas servimo-nos 
de um mediador. Visto que a natureza está tão corrompida, como 
acabo de mostrar, é certo que todas as nossas boas obras serão 
manchadas ou terão pouco peso diante de Deus para o levar a 
unir-se a nós, a ouvir-nos, se nos apoiarmos nos nossos próprios 
trabalhos, esforços e preparações para chegarmos até Deus e lhe 
agradarmos. Não foi sem motivo que Deus nos deu mediadores 
junto da sua Divina Majestade. Ele viu-nos indignos e incapazes, 
teve piedade de nós, e, para nos dar acesso às suas misericórdias, 
proporcionou-nos intercessores poderosos junto da sua 
grandeza. Deste modo, negligenciar esses intermediários, aproximar-nos diretamente da própria Santidade sem intercessão alguma, 
é falta de humildade e de respeito para com um Deus tão 
Santo. É fazer menos caso deste Rei dos reis do que se faria dum 
rei ou príncipe da Terra, que não se abordaria sem auxílio dum 
amigo que falasse por nós. 

84. Nosso Senhor é nosso Advogado e Medianeiro de Redenção 
junto de Deus Pai. É por Ele que devemos orar, com 
toda a Igreja triunfante e militante. É por Ele que temos  
acesso junto da Suprema Majestade, não devendo nunca apresentar-nos diante dela senão sustentados e revestidos de Seus 
méritos, como Jacó, que se cobriu com peles de cabrito para 
receber a bênção de seu pai Isaac. 

85. Mas, não teremos necessidade dum mediador junto do 
próprio Medianeiro? Será tão grande a nossa pureza que possamos 
unir-nos diretamente a Ele, e por nós mesmos? Não é 
Ele Deus, em tudo igual a seu Pai e, por conseguinte, o Santo 
dos santos, tão digno de respeito como o Pai? Pela sua infinita 
caridade tornou-se a nossa garantia e o nosso medianeiro 
junto de Deus, seu Pai, para aplacá-lo e pagar-lhe o que lhe 
devíamos. Mas será isso uma razão para termos menos respeito 
e temor à sua majestade e santidade? 

Digamos, pois, abertamente - com São Bernardo -, que 
temos necessidade dum mediador junto do mesmo Medianeiro, 
e que Maria Santíssima é a pessoa mais capaz de desempenhar 
esta função caridosa. Foi por Ela que nos veio Jesus 
Cristo; é por Ela que devemos ir a Ele. 

Se receamos ir diretamente a Jesus Cristo, nosso Deus, 
por causa da sua grandeza infinita, ou da nossa miséria, ou 
ainda dos nossos pecados, imploremos ousadamente o auxílio 
e a intercessão de Maria, nossa mãe. Ela é boa e terna; 
nada tem de austero ou de repulsivo, nada de demasiado sublime 
e brilhante. Contemplando-a, vemos a nossa própria 
natureza. 

Ela não é o Sol, que pela vivacidade dos seus raios 
poderia cegar-nos por causa da nossa fraqueza. Ela é bela e 
doce como a Lua (Ct 6, 9), que recebe a luz do Sol e a abranda 
a fim de adaptá-la à nossa pequenez. É tão caridosa que 
não repele nenhum dos que pedem a sua intercessão, por mais 
pecador que seja. Pois, como dizem os santos, desde que o 
mundo é mundo, nunca se ouviu dizer que alguém que tenha 
recorrido à Santíssima Virgem, com confiança e perseverança, 
tenha sido por Ela desamparado. 

Ela é tão poderosa que nunca foi desatendida nas suas 
súplicas. Basta que se apresente diante de seu Filho para lhe 
pedir alguma coisa: Ele imediatamente a atende e acolhe, amorosamente 
vencido pelas orações da sua mui querida Mãe, 
que o portou ao seio e o amamentou. 

86. Tudo isto é tirado de São Bernardo e de São Boaventura. 
Pelo que, segundo eles, temos de subir três degraus para chegar 
até Deus: o primeiro, que está mais perto de nós e mais 
conforme à nossa capacidade, é Maria; o segundo é Jesus 
Cristo, e o terceiro é Deus Pai. Para ir a Jesus é preciso ir a 
Maria: Ela é a nossa Medianeira de Intercessão. Para ir ao 
Eterno Pai é preciso ir a Jesus: nosso Medianeiro de Redenção. 
Ora, pela Devoção que a seguir indicarei, observa-se perfeitamente 
esta ordem. 

Artigo Quinto 

É-nos muito difícil conservar a 
Graça e os Tesouros recebidos de Deus 

87. Quinta Verdade. É muito difícil, atendendo à nossa fraqueza 
e fragilidade, conservar em nós as graças e os tesouros 
recebidos de Deus: 

1º. Porque temos este tesouro, mais valioso que o Céu 
e a Terra, em vasos frágeis (2 Cor 4, 7); num corpo corruptível, 
numa alma fraca e inconstante, que por um nada se perturba 
e abate. 

88. 2º. Porque os demônios, que são ladrões muito finos, 
querem apanhar-nos de improviso, para nos roubar e despojar. 
Para isso espreitam noite e dia o momento favorável. Rondam 
incessantemente, prontos para nos devorar e nos arrebatar 
num só momento, por um único pecado, tudo o que ganhamos 
em graças e méritos durante muitos anos. A sua malícia, 
a sua experiência, as suas astúcias e o seu número devem-nos fazer temer imensamente esta infelicidade. Já outras 
pessoas, mais cheias de graça, mais ricas de virtudes, mais 
fundadas na experiência e elevadas em santidade, foram surpreendidas, 
roubadas e lamentavelmente despojadas. 

Ah! Quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do 
firmamento não têm-se visto cair miseravelmente e, em pouco 
tempo, perder toda a sua elevação e claridade! Donde proveio 
esta estranha mudança? O que faltou não foi a graça, que 
não falta a ninguém, foi a humildade. Julgaram-se mais fortes 
e mais capazes do que eram; julgaram que podiam guardar os 
seus tesouros. Fiaram-se e apoiaram-se em si mesmos. Acharam 
a sua casa bastante segura e os seus cofres bastante fortes 
para guardar o precioso tesouro da graça. Foi por causa desta 
confiança não apercebida que tinham em si (embora lhes parecesse 
que se apoiavam unicamente na graça de Deus) que 
o Senhor, infinitamente justo, permitiu que fossem roubados 
e abandonados a si mesmos. 

Ah! Se tivessem conhecido a Admirável Devoção que 
vou expor, teriam confiado o seu tesouro a uma Virgem poderosa 
e fiel, que o teria guardado como seu, considerando isto 
como um dever de justiça. 

89. 3º. É difícil perseverar na justiça, por causa da estranha 
corrupção do mundo. Ele está, presentemente, tão corrompido, 
que se torna quase inevitável serem os corações religiosos 
manchados, senão pela sua lama, ao menos pela poeira.

Assim, é quase um milagre conservar-se alguém firme 
no meio desta torrente impetuosa sem ser arrastado; andar 
neste mar tormentoso sem ser submergido ou pilhado pelos 
piratas e corsários; respirar este ar empestado sem lhe sentir 
as más conseqüências. É a Virgem, a única sempre fiel, sobre 
a qual a serpente jamais teve poder, quem faz este milagre a 
favor daqueles e daquelas que a servem da melhor maneira. 

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