9º dia
Artigo Segundo
Pertencemos a Jesus e a Maria na qualidade de Escravos
68. Segunda Verdade. Devemos concluir do que Jesus Cristo
é para nós, que - como diz São Paulo - não somos nossos,
mas inteiramente d'Ele, como Seus membros e escravos, comprados
pelo preço infinitamente caro de todo o seu sangue (1 Cor 6, 19-20).
Antes do Batismo pertencíamos ao diabo como
seus escravos.
Ao receber este sacramento, tornamo-nos verdadeiros
escravos de Jesus Cristo. Doravante já não devemos viver,
trabalhar e morrer senão para este Homem-Deus (Rm 7, 4),
glorificando-o em nosso corpo (Rm 12, 1) e fazendo-o reinar
em nossa alma. Somos, pois sua conquista, seu povo de aquisição
e sua herança. É pela mesma razão que o Espírito Santo
nos compara:
- Às árvores plantadas ao longo das águas da graça, no
campo da Igreja, e que devem dar frutos a seu tempo (Sl 1, 3).
- Aos ramos duma vinha de que Jesus é a cepa, e que
devem dar boas uvas (Jo 15, 5).
- A um rebanho de que Jesus Cristo é o pastor, e que se
deve multiplicar e dar leite (Jo 10, 1).
- A uma boa terra de que Deus é o agricultor, e na qual
a semente se multiplica, produzindo trinta, sessenta ou cem
por um (Mt 13, 3-8).
Jesus Cristo amaldiçoou a figueira estéril e condenou
o servo inútil, que não tinha feito render o seu talento (Mt 21,19; Mt 25, 24-30). Tudo isto prova que Jesus Cristo quer receber
algum fruto das nossas pobres pessoas, a saber: as nossas
obras, porque estas só a Ele pertencem: “Criados para as
boas obras em Cristo Jesus” (Ef 2, 10).
Mostram estas palavras do Espírito Santo que Jesus Cristo é
o único princípio e deve ser o fim último de todas as nossas
boas obras. Mostram ainda que o devemos servir, não somente
como servos assalariados, mas como escravos de amor.
Explico-me.
69. Neste mundo, há duas maneiras de pertencer a outra
pessoa e de depender da sua autoridade: a simples servidão e
a escravidão, que fazem dum homem, respectivamente, um
servo ou um escravo. Pela servidão, comum entre os cristãos,
um homem compromete-se a servir outro durante um certo
tempo, mediante determinada paga ou certa recompensa. Pela
escravidão, um homem depende inteiramente de outro, por
toda a vida, e deve servir o seu senhor sem pretender paga
nem recompensa alguma, como um dos seus animais, sobre o
qual o dono tem direito de vida e de morte.
70. Há três espécies de escravidão: uma natural, outra forçada
e outra voluntária. Todas as criaturas são escravas de
Deus da primeira forma: “Ao Senhor pertence a Terra e tudo
o que nela está contido” (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos
pertencem à segunda categoria, os justos e os santos à
terceira. A escravidão voluntária é mais perfeita e mais gloriosa
para Deus, que olha ao coração, que pede o coração,
que se chama o Deus dos corações (I Sm 16, 7; Sl 72, 26; Pr 23, 26), ou da vontade amorosa. Por esta escravidão, de fato,
escolhe-se Deus e o seu serviço acima de todas as coisas, ainda
mesmo que a natureza não obrigasse a isso.
71. Há diferenças radicais entre um servo e um escravo:
1º. Um servo não dá ao seu senhor tudo o que é nem
tudo o que possui, nem tudo o que pode adquirir por si mesmo
ou por outro. Mas o escravo dá-se inteiramente, com tudo
o que possui ou pode vir a adquirir, sem exceção alguma.
2º. O servo exige a paga dos serviços que presta ao
senhor, enquanto o escravo nada pode exigir, por maior que
seja a sua aplicação, a sua habilidade, e a força com que trabalha.
3º. O servo pode deixar o senhor quando quiser ou,
pelo menos, quando tiver expirado o tempo do serviço, mas o
escravo não tem o direito de fazer isso.
4º. O senhor do servo não tem sobre ele nenhum direito
de vida e de morte, e se o matasse - como a um dos seus
animais de carga - cometeria um homicídio injusto. Ao contrário,
o senhor do escravo tem, por lei, direito de vida e de
morte sobre ele, de modo que o pode vender a quem quiser,
ou matar, como faria ao seu cavalo.
5º. Finalmente, o servo está só por algum tempo ao
serviço dum senhor, mas o escravo, para sempre.
72. Nada há, entre os homens, que mais nos faça pertencer
a outrem do que a escravidão. Do mesmo modo nada há entre
os cristãos que nos faça pertencer mais absolutamente a Jesus
Cristo e à sua Santa Mãe do que a escravidão voluntária. Isto
é conforme o exemplo do próprio Jesus, que tomou a forma
de escravo por nosso amor (Fl 2, 7), e da Santíssima Virgem
que se disse serva e escrava do senhor (Lc 1, 38). O Apóstolo
chama-se, com certa ufania, “servo de Cristo” (Rm 1, 1; Gl 1, 10; (Fl 1,1; Tt 1,1). Por várias vezes os cristãos são chamados,
na Sagrada Escritura, de “servos de Cristo”. Segundo a
justa observação de um grande homem, a palavra servo significava
outrora apenas escravo porque ainda não havia servos
como os de hoje. Os senhores só eram servidos por escravos
ou libertos. O Catecismo do Concílio de Trento, para que não
reste dúvida alguma sobre a nossa condição de escravos de
Jesus Cristo, exprime-se por um termo que não se presta a
equívocos, chamando-nos “escravos de Cristo”.
73. Posto isto, digo que devemos ser de Jesus Cristo e servilo,
não só como mercenários, mas como escravos amorosos.
Estes, por efeito de um grande amor, entregam-se e dão-se ao
seu serviço, na qualidade de escravos, só pela honra de lhe pertencer.
Antes do Batismo éramos escravos do demônio. Tornounos
o Batismo escravos de Jesus Cristo (Rm 6, 22). Portanto, os
cristãos têm de ser escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
74. O que digo de modo absoluto a respeito de Jesus Cristo,
digo-o relativamente da Santíssima Virgem. Jesus Cristo
escolheu-a por companheira indissolúvel da sua vida, da sua
morte, da sua glória e poder no Céu e na Terra. Por isso e por
graça deu-lhe, em relação à sua Majestade, todos os mesmos
direitos e privilégios que Ele possui por natureza: “Tudo o
que convém a Deus por natureza, dizem os santos, convém a
Maria por graça...”. Deste modo, segundo este ensinamento,
têm ambos os mesmos súditos, servos e escravos, visto que os
dois não têm senão uma só vontade e um só poder.
75. Podemos, portanto, segundo o parecer dos santos e de
vários homens ilustres, dizer-nos e fazer-nos escravos amorosos
da Santíssima Virgem, para deste modo sermos mais
perfeitamente escravos de Jesus Cristo. A Virgem é o meio de
que nosso Senhor se serviu para vir a nós; é também o meio
de que nos devemos servir para ir a Ele. Pois Ela não é como
as outras criaturas que, se a elas nos prendêssemos, nos poderiam
afastar de Deus em lugar de nos aproximar d'Ele. Mas a
mais forte inclinação de Maria é unir-nos a Jesus seu Filho,
e a mais forte inclinação do Filho é que se vá a Ele por sua
Mãe. Isto honra-o e agrada-lhe tanto como honraria e agradaria
a um rei alguém que, para se tornar mais perfeitamente
seu vassalo e escravo, se fizesse escravo da rainha. É por isso
que os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que
“a Virgem Santíssima é o caminho para ir a Nosso Senhor”.
76. Além disso, se, como já disse, a Santíssima Virgem é a
rainha e soberana do Céu e da Terra, não tem Ela tantos súditos
e escravos quantas são as criaturas? Dizem-no Santo
Anselmo, São Bernardino e São Boaventura: “Ao poder de
Deus tudo está submisso, mesmo a Virgem, e eis que ao poder
da Virgem está tudo submisso, até o próprio Deus”. Não será
razoável que entre tantos escravos por força os haja também
por amor, que de boa vontade e na qualidade de escravos escolham
Maria por sua soberana? O quê?! Os homens e os
demônios têm seus escravos voluntários e Maria não os há de
ter? Um rei terá a peito que a rainha, sua companheira, possua
escravos, com direito de vida e de morte sobre eles, porque
a honra e o poder do rei são a honra e o poder da rainha.
Pode-se então acreditar que Nosso Senhor, que partilhou, como
o melhor dos filhos, todo o poder com sua Santa Mãe, ache
mal que Ela tenha escravos? Terá Ele menos respeito e amor
à sua Mãe do que teve Assuero a Ester e Salomão a Betsabé?
Quem ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?
77. Mas onde me leva a minha pena? Por que é que me
detenho aqui em provar uma coisa tão evidente? Se não querem
que alguém se diga escravo da Santíssima Virgem, que
importa? Que se faça e se diga escravo de Jesus Cristo! É o
mesmo que sê-lo da Santíssima Virgem, visto que Jesus é o
fruto e a glória de Maria. Faz-se isto de maneira perfeita por
meio da Devoção de que mais adiante falaremos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário